Dialógos
Intersemióticos e Intertextuais – Cinema e Literatura
Fábio
Jota
A
produção cinematográfica desde o seu surgimento, demonstra uma
relação com a literatura, marcada por adaptações e releituras
que permitem as obras literárias, um outro olhar por meio da
representação filmíca. As adaptações constituem uma grande parte
do cinema contemporâneo, sendo vistas em filmes que tentam preservar
a estrutura original do livro e em outros tipos de adaptações que
recriam o conteúdo da obra literária em experiências artísticas
que formam novos sentidos e representações do texto adaptado.
As
obras literárias já foram revisitadas por vários cineastas que
materializaram os textos na tela, sem necessariamente serem fiéis ao
original. A realização desses diretores destacam uma aproximação
de pontos em comum entre o cinema e a literatura, mesmo apesar das
diferenças estruturais de cada uma das linguagens.
Escritores
como Homero, James Joyce, Virginia Wolf, Machado de Assis , Guimarães
Rosa e vários outros tiveram seus textos adaptados para as telas,
sendo eles o impulso criativo para vários diretores que foram buscar
na linguagem literária possibilidades narrativas e personagens que
colaborassem para composição de suas obras filmícas.
As
adaptações literárias devem ser entendidas de modo mais
abrangente, longe de uma simples transposição de signos de uma
linguagem para outra, pois a adaptação é considerada um fenômeno
tradutório que uma linguagem pode fazer de outra, como é a
experiência existente entre o cinema e literatura.
Na
produção cinematográfica contemporânea é pertinente o uso de
fontes literários para adaptações filmícas, tendo como base o
parâmetro da fidelidade neste tipo de relação entre cinema e
literatura, porém é preciso lembrar que um filme incorpora e
modifica vários intertextos no seu interior sem obrigatoriamente se
moldar pelos aspectos de uma adaptação que vise conservar elementos
originais de um livro. De acordo com DINIZ ( 2005, p.38), “um filme
pode conter/ citar/apropriar-se de um ou mais textos, sem contudo
constituir-se como sua adaptação”, pois a idéia de uma adaptação
fiel dentro dos estudos fIlmÍcos e as abordagens que visam
compreender a interação entre linguagens vêm sendo desvalorizada
no que diz respeito a esse tipo de relação entre as linguagens.
A
tradução de características da linguagem verbal para uma linguagem
não – verbal ou vice – versa, revela um tipo de adaptação que
envolve dois sistemas semióticos em uma operação chamada de
tradução intersemiótica, um tipo de adaptação que em sua prática
recupera características de outras linguagens por meio de alusões,
citações ou paródias para criar uma relação de interface,
configurando os signos da linguagem traduzida de acordo com as
qualidades e normas do suporte ou linguagem que opera a tradução
intersemiótica. Embora a formação de um novo sentido não surja
somente da relação entre as estruturas das duas linguagens, mas
também do contexto que a obra resultante está inserida.
Diante
essa visão que possibilita uma compreensão da interação entre as
linguagens e percebe na prática tradutória, uma interligação do
cinema e literatura mediante a tradução intersemiótica, o objeto
dessa análise faz referência a esse tipo de abordagem do filme para
com a literatura ao investigar a relação intersemiótica do filme
Ulisses’s Gaze (UM
OLHAR A CADA DIA, 1995,
175min)
de Theo Angelopoulos e a Odisséia de Homero.
O
filme Ulisses`s Gaze faz alusão ao herói grego da Odisséia por
meio de referências diretas e indiretas que perpassam a narrativa
cinematográfica. A utilização de elementos do poema homérico
compõe a narrativa criada por Angelopoulos a partir da conversão de
signos e representações próprias da literatura em categorias da
estrutura sígnica do cinema para construção de uma forma –
conteúdo que assume uma outra significação e materialidade dentro
do filme.
Esse
diálogo intertextual com a obra de homero acontece paralelo a outras
citações que ressoam nas falas dos personagens, fazendo do filme
uma obra composta por intertextos literários que exteriorizam a
densidade e sentimentos dos personagens. A presença dos intertextos
e imagens de outros autores recuperados num processo diálogógico
que mobiliza essas referências para o interior da obra filmíca,
assumem uma significação diferente do contexto original que a obra
literária foi produzida, pois no filme, a tradução intersemiótica
cria por meio das condições receptivas e produtivas da linguagem
cinematográfica junto as características do quadro social e
politico do século XX, uma resignificação das estruturas aludidas
da obra homérica e dos demais autores citados ao ajusta – los ao
contexto de produção da obra e os aspectos culturais que operam
como interpretante .
A
análise desse filme demonstra o caráter inacabado da obra de arte e
como ela constitui seu discurso fundado a partir da relação com
outras linguagens. Esse tipo de composição estética revela uma
obra hibrida que não se baseia apenas em um discurso e nas
especificidades de uma única linguagem. A obra desse cineasta grego
confirma esse aspecto híbrido que é tão característico da arte
contemporânea.
Considerado
um grande leitor e apreciador da literatura, Angelopoulos refletiu
em suas obras, referências aos grandes autores da literatura grega
como aos grandes clássicos da literatura. Autores da poesia e da
prosa vão dar o refinamento das vozes de seus personagens ao extrair
segundo BORDWELL (2009, p.187 ) “diálogos da poesia de Homero,
Eliot e George Seferis” reanimando temas do passado no presente
reconfigurador do século XX. Esse artifício do diretor em seus
filmes, demonstra que o passado é usado não somente para ser pura
nostalgia, mas como voz contrastante ao cenário estético e
político do presente. A ligação com o passado revela a
profundidade das raízes de seus filmes que de acordo com BORDWELL (
2009) além retratar a história da Grécia, vão estar ligados à
mitologia e à literatura grega e de seus vizinhos, os Bálcãs . Os
vários flashes do passado em Ulisses`s
Gaze ressaltam
como o diretor organiza sua narrativa ao usar fatos e referências
artísticas do passado mais para criticar o presente formando deste
modo uma antítese.
Na
ação de A., protagonista do filme, há de modo implcíto uma
semelhança com Ulisses, por causa da viagem que ele faz em seu
desconhecido percurso. O personagem busca em sua viagem na narrativa
cinematográfica, uma imagem da região onde viveu oposta ao
presente, sem a destruição e violência da guerra que colocou as
várias etnias em processo de desterritorização na Grécia e nos
Bàlcãs no mundo contemporâneo. As atitudes do personagem
correspondem ao mesmo desejo de Ulisses na Odisséia que desejou
voltar para casa e sua origem após a batalha da Guerra de Tróia
para retomar sua patria.
O
herói da Odisséia simboliza a valentia e a astúcia que são
descritos nos cantos do poema épico, uma estrutura poética ritmada
e melódica. Ulisses apresenta o desdobramento de sua arete para
adquirir virtudes que o façam resistir e transcender as imposições
dos deuses que interverem em seu regresso para Ítaca. No filme há
uma alusão ao herói grego percebida em A., mas necessariamente não
há as mesmas virtudes que caracterizam Ulisses. Segundo SOARES (
2006) A. é um Ulisses contemporâneo fracassado e perdido que não
consegue fixar seu olhar sobre a película perdida para restituir sua
identidade. O personagem no filme é apresentado em longos planos
sequências que quase não tem cortes, de um modo melancôlico em
meio as paisagens nubladas e desoladas nas regiões dos Bàlcãs.
Diferentemente do homem grego que representa as decisões da Polis, a
voz coletiva, A. se lança em uma viagem que ele mesmo afirma ser
“Uma viagem pessoal” que refletirá um movimento para fora em
busca de um sentido para os Bálcãs e para si próprio na imersão
interior que ele mergulha para resolver seu conflito existencial.
Da
mesma forma que outros autores e diretores do século XX como são os
casos de James Joyce e Jean Luc Godard que também fizeram referência
ao intertexto da Odisséia, Angelopulos em sua leitura particular da
obra homérica, não apresenta ligação ou referência as forças
extra – terrenas e nem mesmo as utopias políticas que contagiaram
sua geração durante os anos 70 quando começou a produzir seus
filmes. Ulisses’s Gaze se filia a obra O
desprezo
( 1963) de Jean Luc Godard ao expressar o que STAM ( 2008) identifica
como ausência de lugar das divindidades para dar espaço ao Ethos
moderno. Em vez da referência aos deuses, o diretor grego em
Ulisses’s Gaze preserva algumas características de sua filmografia
e do contexto do século XX, pois segundo BORDWELL ( 2009) os
filmes de Angelopoulos mostram as agonias da civilização moderna,
os regimes totalitários, a miséria de emigrantes apátridas e o
desencantamento com o pensamento de esquerda.
Algumas
referências intertextuais permeiam o interior de Ulisses`s
Gaze ,
com ocorrências em diferentes níveis para a formação do sentido
da obra fílmica. Angelopulos elenca nessa obra, a recuperação de
elementos da herança cultural da Grécia que passa pela literatura,
o cinema e a filosofia, entrecruzando tempos e estéticas para a
composição das sequências do filme. O
recurso usado pelo cineasta reflete as aspirações literárias dos
seus filmes que provocam efeitos densos e melancólicos ao expressar
o desencatamento dos seus personagens diante um mundo dominado pela
barbárie causada pelo homem contemporâneo e a ausência divina.
Segundo Soares (2006) no filme Ulisses’s
Gaze há
varias camadas que podem ser desfolhadas como a epigrafe de Platão,
fragmentos de Romeu e Julieta de William Shakespeare, os versos de
T.S. Elitot e Rainer Maria Rilke e até mesmo a voz do próprio
diretor no filme. Na cena final, o personagem A. em sua fala cria uma
paráfrase de uma das passagens da Odisséia que não é identicada
de qual canto pertence, mas têm a marca do nome do poeta grego. A.
depois de um trágico incidente diz sozinho na filmoteca em Sarajevo
:
Quando
eu voltar, será nas vestes de um outro homem. Com o nome de um outro
homem. Minha vinda será inesperada. Se você olhar para mim
incrédula e dizer: “você não é ele”. Eu lhe darei indícios e
você acreditará em mim. Eu lhe falarei sobre o limoeiro em seu
jardim, a janela que deixa entrar o luar e, então, sinais do corpo,
sinais de amor.
E,
enquanto subimos, trêmulos, ao velho quarto, entre um abraço e
outro, entre juras de amor, eu lhe falarei sobre a viagem a noite
toda e todas as noites seguintes entre um abraço e outro, entre
palavras de amor, toda a aventura humana, a história que nunca
termina.
Para
PLAZA ( 1987), a passagem de uma linguagem para outra é processada a
partir dos meios que o artista possui para a operação tradutora. A
passagem do texto de homero que no original era organizado em cantos
delitimitados ritmicamente demonstra como a operação tradutora
implica na produção de um novo signo que se adapta ao que PLAZA (
1987) chama de leis normativas do novo suporte
A
operação da tradução de um sistema signico para outro expressa
como é constituído o filme, mas ainda revela como esse tipo de
relação entre os sistemas semióticos que ocorrem a partir das
traduções intersemióticas geram o que DINIZ ( 1999) chama de
consistências proporcionais nesse processo que envolve o cinema e a
literatura. A idéia de consistências proporcinais induz ao mesmo
sentido de equivalência entre os sistemas de signos no processo de
tradução intersemiótica. Segundo DINIZ ( 1999) a equivalência é
referente a função que os elementos de um determinado sistema
semiótica de uma linguagem pode exercer no processo tradutório,
criando uma semelhança ou equivalência com o sistema semiótico da
linguagem do hipotexto traduzido. No filme, a relação de
equivalência é identificada pelo uso das falas e diálogos para
incorporar os intertextos da Odisséia. Os signos do cinema, tais
como os dialogos dos personagens são usados para a apropriação dos
intertextos homéricos e equivalem aos do poema épico, acentuando a
oralidade referente ao estilo desse tipo de texto.
As
várias vozes dentro do filme representam algo análogo ao romance,
pois numa obra literária há uma série de vozes que expressam os
diferentes discursos sobre determinado assunto . Essa tendência
muito comum aos romances, emprega de acordo com STAM ( 2008) vozes
distintas que consistem na presença de discursos independentes
orquestrados pelo autor. A técnica é produzida pelo que BAKHTIN
apud STAM ( 2008) chama de Polifonia, recurso muito usado nos
romances do escritor russo Dostoievsky para manifestar a presença de
opiniões e pontos de vista do autor , sendo observado no filme
Ulisse`s Gaze que apresenta enunciados convertidos nos diálogos e
falas dos personagens retirados dos intertextos literários junto as
imagens documentais dos irmãos Manakis que simbolizam a simplicidade
do povo grego e momentos do começo do século XX da região dos
Bàlcãs durante a primeira guerra mundial. O efeito polifônico do
filme induz ao sentido da arte contemporânea que segundo STAM( 2008)
é baseada não mais na necessidade do novo, mas numa estética de
colagem combinatório de formas e gêneros anteriores reunindo uma
pluralidade de perspectivas que embaçam as fronteiras entre o
fictício e o real.
As
alusões a
Odisséia
identificadas no filme de Angelopoulos de modo direto como acontece
nos intertextos citados por A. em suas falas e nas cenas que fazem
referência direta aos cantos do poema homérico, tais quais o
momento que o protagonista encontra sua mãe falecida no trem como
Ulisses em sua passagem pelo Hades, a cena do filme que faz
referência a situação que o herói grego passou com o Ciclope e
as alusões a viagem de Ulisses são todas resignificadas no filme
através do signos cinematográficos e o contexto de produção que
constitui o aspecto cultural da obra. Os signos do cinema usados
para tradução intersemiótica criam de acordo com Plaza ( 1987)
um signo equivalente ou mais desenvolvido que se tornam o significado
ou interpretante do primeiro signo, no caso dos signos literários
dos intertextos aludidos da Odisséia. Outras alusões feitas de modo
indireto pelo filme a partir dos signos do cinema correspondem a
algumas estruturas do poema homérico como pode ser visto mediante o
uso da narrativa não – linear e o monólogo interior gerado pelo
narrador em voz on e off na narrativa filmíca. Além de demonstrar
um diálogo intertextual por meio da forma, esses signos do cinema
apontam pontos semelhantes entre as estruturas da obra filmíca e
literária numa relação de equivalência que compõe junto a
leitura particular feita na tradução, os traços estilísticos de
Angelopoulos.
A
partir das constatações presentes no filme, temos por meio das
estruturas identificadas e caracateristicas do personagem principal
uma proximidade com o herói da Odisséia e uma resignificação das
qualidades e ações do guerreiro projetadas em A., cuja a influência
do contexto de produção da obra opera como interpretante na
tradução intersemiótica junto ao que PLAZA ( 1987) vê como as
qualidades materiais do signo tradutor que influem e semantizam as
relações de recepção através das formas produtivas e receptivas
inscritas na materialidade do signo.
O
dialogo intertextual identificado no filme resultou na criação de
um hipertexto segundo as categorais intertextuais de Gerard Genette
na alusão ao poema homérico, mas não mantém em relação a ele,
algum tipo de fidelidade ou preservação da representação
composta pela obra original. Apesar de manter algumas equivalências
com a representação do herói grego traduzidas pelas qualidades e
especifidades da linguagem cinematográfica.
O
intertexto da obra homérica soma junto as outras referências no
interior do filme, qualidades estéticas e discursivas que marcam o
processo de reciclagem da arte contemporânea que de acordo com PLAZA
( 1987) não é pautada mais pela idéia do novo, mas por uma
complexa inter- relação entre as linguagens. Embora o filme
apresente uma relação com a tradição literária e
cinematográfico, a obra demonstra o papel do diretor enquanto
operante de uma tradução criativa e crítica em relação ao uso de
outras linguagens em sua realização artística com impressões mais
densas e subjetivas.
Bibliografia
BORDWELL,
David.
Figuras traçadas na Luz: A encenação no cinema.
São Paulo: Editora Papirus, 2009.
DINIZ,
T. F. N. Literatura
e Cinema: da semiótica à tradução cultural.
Ouro Preto:
Editora
Ufop, 1999
HOMERO.
Odisséia.
3° Edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.
PLAZA,
J. Tradução
Intersemiótica. São
Paulo: Perspectiva, 1987.
SOARES,
Leonardo Francisco. Leitura
da outra Europa – Guerras e Memórias na literatura e no cinema da
Europa Centro Oriental.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
Disponível
http://biblioteca.universia.net/html_bura/ficha/params/id/30856871.html
. Acesso 10 NOV 2011.
STAM,
Robert. A
literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ANGELOPOULOS,
Theo. UM
OLHAR A CADA DIA
. São Paulo: Mundial Filmes, 1995. 1 Fita de vídeo (175min), VHS,
son, color, legendado. Tradução de: To Vlemma tou Odyssea.